sábado, 1 de março de 2014

O guerreiro e o sonho



Próximo ao ocaso, encontramo-nos em um de seus inesperados sonhos, eu e o ilustre guerreiro. Foi em uma calçada alta de frente para o mar. Às nossas costas, três pescadores eternamente pétreos arrastavam sua rede em direção a areia da praia. O silêncio entre nós deve ter durado milésimos de segundo, pois o sonho processava uma urgência latente daquele diálogo. Seus olhos, vistos por ele mesmo, estavam atentos a cada movimento que eu, criada e elaborada por sua inteligência, representava com meu corpo.

Levei-o até a areia da praia, por onde caminhamos imersos no som que as ondas do mar produziam. Durante o andar sem rumo, retirava-o abruptamente de seu sossego com indagações a respeito do seu eu e do eu que ele havia criado para mim. Eu era uma luz na sua escuridão, a personificação de suas dúvidas e seus conceitos embaralhados, a respeito de quase tudo. Às vezes, interrompia a caminhada, e sentava com as pernas estendidas, admirando a linha horizontal que nunca alcançaríamos. Ele continuava sempre em pé, ao meu lado, contemplando-me.

- Quanto tempo ainda temos aqui? - perguntei enquanto riscava a areia com os dedos.
- Não muito. - ele respondeu suspiroso. 
- Em que você acredita, de verdade? Isso tudo é irreal só por ser um sonho? Um irreal dentro do real?
- Quando você parará de me fazer perguntas que não sei responder?

Indiferente ao que ele retrucava, eu prosseguia com as interrogações.

- Sobre o que gostaria de conversar? Você acredita em que, afinal? Acredita na dualidade humana? Existe o bem e o mal? Sabe qual o maior desafio do homem, nesta dimensão física? É o de viver em um espaço com outras pessoas que necessitam dos mesmos recursos que aquele espaço oferece, respeitando limites que o outro delineia, além de compreender e aceitar a satisfação e regozijo alheios. Nossos anseios primitivos, que antes de mais nada, são princípios de sobrevivência e pré-requisitos básicos de bem estar físico ou mental - respirar, comer, dormir, eliminar escórias do corpo, nos definem como animais. O que nos define como animais racionais é o anseio pela comunicação e argumentação que possam representar desejos, sentimentos, histórias, idéias, sonhos, conflitos, fomentados por poderes como o raciocínio, imaginação, empatia, projetação, oriundos de nossa psique. Viver em sociedade é entender o outro ser humano no conjunto de todos os seus anseios e poderes e não como objeto que utilizamos ou desprezamos para alcance de nossos prazeres individuais. -  pausei reflexiva - No que você está pensando?

-Estou pensando no assunto. 

Eu sorri porque percebi, em seu sonho, que ele estava mentindo, e insisti:

-No que você está pensando? 
-Estava calculando em que momento lhe daria um beijo, e se, quando chegado o momento, avisaria ou pediria. Estava pensando nisso. 
-Beijo não se solicita.

Nesse momento, ele curvou-se para beijar sua criação onírica, eu, mas recuei e disse-lhe com outro sorriso:
-Tenha calma. 

Após uma outra pausa, já continuando a caminhada na contramão do vento, retomei o meu discurso:
- Considero-me enigmática. Gosta de desafios?
- Sim. Gosto. 

Havíamos caminhado silenciosamente um longo trecho  à beira da praia, quando resolvi:
-Agora quero o beijo.

Aproximou-se mais uma vez, eu novamente recuei:
-Calma. [...] Disse que gostava de desafios?
-Sim. Eu disse. 
-Quero que seja um beijo diferente. Quero que me carregue em seus braços e que o beijo dure até aquela escultura, onde nos encontramos, no princípio do seu sonho. - e apontei ao longe. 
-Farei de tudo para ir além. - ele disse, sem titubear.

A última frase ecoou dentro de seu peito, tornando-se cada vez mais distante. E antes que se consumasse o beijo, o tempo do sonho esgotou, e ele despertou absolutamente.





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