sexta-feira, 28 de março de 2014

Panapaná


Um dia, minha prima de oito anos chegou da aula de natação eufórica. Ainda com a touca e os óculos de nadador na testa, corria e pulava, falando alto pelos cantos da sala que as “bloboletas” invadiram a cidade. O que foi, Silvinha? – eu perguntava a ela, que engasgava tentando silabar borboleta.

- Tem que levar essa menina ao fonoaudiólogo. – dizia minha mãe a Tia Laura, que com pedaços de jornal embrulhava cada bibelô da mesinha de canto, empilhando-os dentro de uma caixa. 

- E depois a um psicólogo. Essa menina é hiperativa. – continuou.

- Fala bor, Silvinha – eu tentava ensiná-la.
- Bor...– ela repetia.
- Bo! 
- Bo...  – ela repetia.
- Lêta
- Lêta! - e ela saia correndo – Bloboleta! Bloboleta! – e se jogava no chão às gargalhadas.

As borboletas invadiram mesmo a cidade, eu vi no jornal – confirmou minha avó sem muito entusiasmo. Ela não estava bem. As sessões de quimioterapia a deixavam irritada por causa dos enjôos constantes. Precisávamos vender o casarão antigo para pagar o restante do tratamento e as contas vencidas. Éramos, então, cinco mulheres morando sozinhas no centro da velha São Luis, ali pelas ruas de paralelepípedos. Eu sentiria falta do barulho das dez da manhã, dos vendedores ambulantes, dos carros que se espremiam angustiadamente naqueles caminhos difíceis, dos históricos postes de lamparina, e, principalmente, dos azulejos que minha avó tanto adorava. “Minha bisavó, Dona Eulália de Cândido Bezerra, encomendara de Portugal. Foram pintados um a um pelas mãos do grande artista Augusto Azevedo Braga, que todos acreditam ter sido seu primeiro amor. É o tesouro que ainda me resta” – ela falava emocionada, colocando as mãos no peito.


No dia seguinte, o caminhão de mudanças já estava pronto para seguir o destino rumo à nova residência, abarrotado com a mobília antiga, quinquilharias e lembranças das gerações passadas. O casarão já estava completamente vazio de todas as coisas, quando a pintura a óleo, retrato fiel de Dona Eulália de Cândido Bezerra, foi retirada respeitosamente por minha tia Laura, do alto da parede. Todas nós assistimos silenciosamente ao reverente momento. Minha avó derramou-se em lágrimas. Sua tristeza nos mortificava.     

Os novos proprietários chegariam dali a uma semana. Eles queriam montar uma funerária. Ao passar pelo portãozinho de ferro, eu não quis mais olhar para trás. Minha mãe, ao volante, e minha tia no banco de passageiro recordavam histórias de sua infância naquele casarão. Minha avó já havia tomado um calmante e adormecera, abraçada ao retrato de minha tataravó. Eu e a pequena Sílvia, sentada em meu colo, no banco traseiro, olhávamos o movimento da rua pela janela do carro. De repente, ela apontou para o alto e falou:

- Olha, prima! As bloboletas!

E eu vi uma nuvem de incontáveis borboletas amarelas, enfeitando o céu da cidade, voando juntas em todas as direções. Presenciar aquele espetáculo preencheu minha alma com uma sensação repentina de paz. Silvinha tinha os olhos arregalados de admiração.

Eu, então, ensinei a ela:
- Fala panapaná, Silvinha!

E ela repetiu:
- Panapaná!

Encostei-me para trás no banco do carro e sorri satisfeita. Era mesmo tempo de mudanças.

Vanessa L (Texto escrito em 2008, eu acho)


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