segunda-feira, 31 de março de 2014

Teu beijo tinha gosto de morango

Teu beijo tinha gosto de morango. E isso lembrava a caixinha de batom da minha irmã, que tinha o formato de morango. Lembrou-me também o dia em que fui com meu pai ao supermercado, pouco antes de ele falecer. Naquele dia compramos três quilos de morangos enormes, tão grandes que até perguntei ao meu pai se eram transgênicos. “O homem na televisão tinha falado sobre isso na noite anterior”. Meu pai disse que não, que eles eram grandes assim porque “bebiam” muita água. Desde então comecei a beber muita água pra ver se crescia mais rápido que as meninas da minha turma. Aí um dia perguntei para minha mãe: Mãe, se eu beber muita água eu vou ter peitos grandes? Ela fez cara de zanga, e disse assim: Menina, de onde você tirou isso? Eu fiquei calada com medo de falar que o papai tinha dito que quando a gente bebia muita água crescia mais rápido. De repente, era lorota de pai. E era mesmo. Foi então que entendi que os pais da gente também mentem. Nesse dia, ela também desmentiu a história do Papai Noel, mas confirmou a existência das renas o que, de certa forma, me confortou um pouco. Aquela foi uma das conversas mais longas que tive com a minha mãe. Minha mãe não era de falar muito. Ela e meu pai, em vez de conversar, cantavam e dançavam no meio da sala. Acho que foi daí que comecei a gostar tanto de música. Aprendi a tocar flauta aos doze anos. Tem que respirar bem. E olha que eu nem imaginava que a gente precisava aprender a respirar. O professor mandava encher a barriga quando inspirasse e era engraçado. Às vezes, ele pedia que eu assoprasse uma vela a três palmos de distância. Quando meu aniversário chegou, eram treze velinhas em cima da torta. Fechei meus olhos com força e, antes de assoprá-las, fiz o pedido. Meu professor me deu os parabéns pelo desempenho e gracejou dizendo que eu era uma menina extremamente suspirosa. Todos em volta riram, inclusive tu. Lembro que suspirei quando te beijei a primeira vez, depois daquele pedaço de torta. Acho que era porque teu beijo tinha gosto de morango.

Vanessa L

sexta-feira, 28 de março de 2014

Panapaná


Um dia, minha prima de oito anos chegou da aula de natação eufórica. Ainda com a touca e os óculos de nadador na testa, corria e pulava, falando alto pelos cantos da sala que as “bloboletas” invadiram a cidade. O que foi, Silvinha? – eu perguntava a ela, que engasgava tentando silabar borboleta.

- Tem que levar essa menina ao fonoaudiólogo. – dizia minha mãe a Tia Laura, que com pedaços de jornal embrulhava cada bibelô da mesinha de canto, empilhando-os dentro de uma caixa. 

- E depois a um psicólogo. Essa menina é hiperativa. – continuou.

- Fala bor, Silvinha – eu tentava ensiná-la.
- Bor...– ela repetia.
- Bo! 
- Bo...  – ela repetia.
- Lêta
- Lêta! - e ela saia correndo – Bloboleta! Bloboleta! – e se jogava no chão às gargalhadas.

As borboletas invadiram mesmo a cidade, eu vi no jornal – confirmou minha avó sem muito entusiasmo. Ela não estava bem. As sessões de quimioterapia a deixavam irritada por causa dos enjôos constantes. Precisávamos vender o casarão antigo para pagar o restante do tratamento e as contas vencidas. Éramos, então, cinco mulheres morando sozinhas no centro da velha São Luis, ali pelas ruas de paralelepípedos. Eu sentiria falta do barulho das dez da manhã, dos vendedores ambulantes, dos carros que se espremiam angustiadamente naqueles caminhos difíceis, dos históricos postes de lamparina, e, principalmente, dos azulejos que minha avó tanto adorava. “Minha bisavó, Dona Eulália de Cândido Bezerra, encomendara de Portugal. Foram pintados um a um pelas mãos do grande artista Augusto Azevedo Braga, que todos acreditam ter sido seu primeiro amor. É o tesouro que ainda me resta” – ela falava emocionada, colocando as mãos no peito.


No dia seguinte, o caminhão de mudanças já estava pronto para seguir o destino rumo à nova residência, abarrotado com a mobília antiga, quinquilharias e lembranças das gerações passadas. O casarão já estava completamente vazio de todas as coisas, quando a pintura a óleo, retrato fiel de Dona Eulália de Cândido Bezerra, foi retirada respeitosamente por minha tia Laura, do alto da parede. Todas nós assistimos silenciosamente ao reverente momento. Minha avó derramou-se em lágrimas. Sua tristeza nos mortificava.     

Os novos proprietários chegariam dali a uma semana. Eles queriam montar uma funerária. Ao passar pelo portãozinho de ferro, eu não quis mais olhar para trás. Minha mãe, ao volante, e minha tia no banco de passageiro recordavam histórias de sua infância naquele casarão. Minha avó já havia tomado um calmante e adormecera, abraçada ao retrato de minha tataravó. Eu e a pequena Sílvia, sentada em meu colo, no banco traseiro, olhávamos o movimento da rua pela janela do carro. De repente, ela apontou para o alto e falou:

- Olha, prima! As bloboletas!

E eu vi uma nuvem de incontáveis borboletas amarelas, enfeitando o céu da cidade, voando juntas em todas as direções. Presenciar aquele espetáculo preencheu minha alma com uma sensação repentina de paz. Silvinha tinha os olhos arregalados de admiração.

Eu, então, ensinei a ela:
- Fala panapaná, Silvinha!

E ela repetiu:
- Panapaná!

Encostei-me para trás no banco do carro e sorri satisfeita. Era mesmo tempo de mudanças.

Vanessa L (Texto escrito em 2008, eu acho)


sexta-feira, 21 de março de 2014

Com a corda no pescoço

Guardaste em mim, naquela noite, um pouco dos teus ressentimentos. Das cidades em que moraste nada me contaste maravilhado. És uma criatura impaciente. Talvez nunca tenhas amado deveras. Infeliz por hábito, fazes piadas das tuas agruras. Preferes fantasiar que um dia serás feliz a viver plenamente o que te foi oferecido até aqui. Vou concluir o pouco que de ti eu sei: és uma esquálida parede que uma calçada larga atravessa.

Serás como um som que se afasta consoante o sopro do vento.

Na manhã daquele dia em que me beijaste a última vez, vi diferente as cores que desfilavam ao redor de mim. Vi diferente o mar que cambaleava no banco de areia daquele trecho litorâneo, e estava diferente eu mesma, que me estranhei. Era constante a imagem dos teus olhos na minha memória. Ainda não sou capaz de decifrá-los inteiramente. Ademais, usaste tantas palavras para agradar-me. Fizeste comigo incontáveis planos. E enquanto os sussurravas em meu ouvido, tiravas minhas roupas paulatinamente. Senti-me com quinze anos, no auge da minha imaturidade afetiva. Fizeste meu coração borbulhar. Penso em ti com demasia. É incômodo. Dói.

Tempo. Ainda há como não me apaixonar. Estou por um triz. Conscientemente abandono-me ao desperdício explícito do tempo de vida. É conscientemente que faço isso. É como eu própria calçar a corda em meu pescoço e chutar a cadeira sob os pés. Mas ainda existe a cadeira ali, hesitante. Ainda tenho a chance de desfazer os nós. És uma criatura anti - heroica. Começo a odiar-te agora. Mas quanto mais te odeio, mais necessito de ti. Preciso que tu sumas, como tanto prometes. O mais rápido possível. Corre para as vizinhanças. Estás minando minha placidez, minha calmaria interior, o que há de bom em mim.  

Vanessa L (Janeiro/2010)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Olhai os lírios do campo

Um dos livros mais emocionantes que li foi "Olhai os lírios do campo", de Érico Veríssimo, quando eu tinha 14 anos de idade. O livro trata de amor, do amor entre Eugênio e Olívia. Infelizmente, Eugênio abdicou de sua amada por uma vida de riqueza e luxo junto a outra mulher.

Ao longo do romance, percebe-se a transformação espiritual do personagem, quando ele se divorcia de sua esposa rica, Eunice, quando ele decide tornar-se médico de pobres, quando ele assume a filha Anamaria, fruto do relacionamento com Olívia, e por aí vai. 

O livro tem um teor melancólico e nostálgico. Ainda assim recomendo que leiam. Traz uma reflexão sobre o que é essencial em nossas vidas. Certamente luxo e riqueza não são. 

Deixo ainda uma passagem bíblica que trata justamente sobre o assunto

Olhai os lírios do campo e as aves do céu

"Ninguém pode servir a dois senhores; pois ou há de aborrecer a um e amar ao outro; ou há de unir-se a um e desprezar ao outro; Não podeis servir a Deus e às riquezas. Por isso vos digo: não andeis cuidadosos da vossa vida pelo que haveis de comer ou beber, nem do vosso corpo pelo que haveis de vestir; não é a vida mais que o alimento, e o corpo mais que o vestido? Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta;não valeis vós muito mais do que elas? Qual de vós, por mais ansioso que esteja, pode acrescentar um cúbito à sua estatura? Por que andais ansiosos pelo que haveis de vestir? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam, contudo vos digo que nem Salomão em toda a sua glória se vestiu como um deles. Se Deus, pois, assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Assim, não andeis ansiosos, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com que nos havemos de vestir? (pois os gentios é que procuram todas estas coisas); porque vosso Pai celestial sabe que precisais de todas elas. Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas." (Mateus 6:24-33)

Paz de Deus a todos. 

terça-feira, 18 de março de 2014

A cultura do desejo

Desejo: s.m. Vontade de possuir ou fazer algo.  
Segundo a definição da palavra desejo, entende-se por desejo o anseio, a vontade de ter aquilo que não se tem. 

Tentarei tratar disso de maneira bem informal, apenas relatando algumas de minhas observações.

Lembro que há sete anos, em 2007, foi anunciado pela Apple o primeiro Iphone. Naquela época, apenas alguns colegas mais abastados da minha turma conseguiram adquirir o celular revolucionário sem teclado físico, com tela sensível ao toque. Algumas pessoas se aglomeravam para admirar o novo smartphone da maçã (fruta - símbolo do desejo). Em pouco tempo, um terço daquelas mesmas pessoas já havia comprado um Iphone para si, que na época custava algo em torno de R$ 1200,00 enquanto o salário mínimo era de R$ 380,00. Vale lembrar que o primeiro Iphone não tinha compatibilidade com redes 3Gs tampouco presença de GPS, mas já chegou ao mercado sincronizado com o iTunes.

No ano seguinte e a cada ano a Apple vem lançando novos aparelhos Iphone e as pessoas continuam comprando. O último aparelho, o Iphone 5S, de Outubro de 2013, foi vendido (e muito bem vendido) em várias versões. Com valores entre R$ 2069,10 e R$ 3599,00, nas lojas brasileiras, continua sendo representação de status social. Sempre haverá uma pequena novidade, quer seja memória maior quer seja um layout diferente, para justificar a exorbitância dos preços. Tudo para atiçar o desejo do cliente, que vai até a loja e, não raramente, sacrifica todo o salário do mês ou o limite do cartão de crédito para adquirir o objeto de seu desejo. Afinal, o modelo de um ano atrás já se tornou obsoleto.

O desejo tem influenciado sobremaneira nossas vidas, guiando nossas ações, escolhendo nossos caminhos. Vivemos no tempo do desejo. Somos encoleirados pelos nossos desejos, e eles nem sempre são racionais. Você quer comprar uma bolsa de marca francesa porque a marca é mundialmente reconhecida. Você acha que as pessoas vão te idolatrar pela bolsa que você tem? É verdade que você vai se deparar com uma penca de admiradoras idiotas, não suas... Da bolsa! Você quer comprar um carro de luxo, importado, um BMW, um Land Rover Evoque, um Ferrari...Você acha que conseguirá conquistar mais mulheres com esses carros?...Provavelmente, sim! Você conquistará muitas mulheres interessadas em um relacionamento com você porque elas também querem as coisas...As coisas...que você tem. Se der sorte, talvez ela comece a gostar de você também. Desejamos mais dinheiro, e quanto mais dinheiro temos, mais o desejamos. Desejamos coisas, muitas coisas ao mesmo tempo. Desejamos estar na moda. A moda passa e com ela vamos, no seu embalo. Desejamos comer os mais variados pratos. Desejamos tanto que nem sabemos exatamente o que. Onde você quer comer? Em que restaurante? São tantas opções... Se pudesse, em uma noite, iria a todos. Desejamos a mudança do nosso corpo. Aprendemos que somos feios, porque estamos cada vez mais expostos e as pessoas nos observam e nos comparam com modelos "photoshopados" dos outdoors.

Desejamos outras pessoas.
Coisificamos as pessoas, as idealizamos e passamos a deseja-las.
Quando obtemos a pessoa-coisa desejada, passado um tempo, a guardamos no fundo do armário, como o sapato caro e da moda que depois tornou-se obsoleto.

É... Não valorizamos nunca o que temos mesmo. Vivemos pelo desejo, a chama eterna que nos consome. O desejo em si nunca será saciado. Ele só existe no 'não ter'. Como podemos desejar algo que já temos?

Por isso, os relacionamentos acabam. Nós nos cansamos de nossas pessoas - coisas. Queremos um outro brinquedo, um outro smartphone, um outro carro, uma outra bolsa de marca, uma outra pessoa, para nos cansarmos de novo e de novo. A euforia dura instantes. O desejo é um leão sempre faminto.

Nós desejamos e também queremos ser coisas-desejadas. Prova disso é que os homens injetam testosterona para hipertrofiar seus músculos (já hipertrofiados) e as mulheres recorrem cada vez mais às próteses de silicone. Bendito silicone - gerando empregos desde sempre - Cirurgiões plásticos, atrizes pornográficas, rainhas de bateria, modelos da Playboy se beneficiaram muito dele nas duas últimas décadas. O desejo gera dinheiro, porque as pessoas são estimuladas por ele. Conheço muitas pessoas que se casaram logo depois que colocaram silicone. Acho que passaram a se gostar mais porque tinham peitos volumosos que chamavam atenção, e isso fez com que elas se tornassem mais femininas e sorridentes. Uma pena que o silicone não sustente nenhum relacionamento. Conheço muitos casais que se separaram, apesar das super - mamas. Nem peitos, nem glúteos sarados, nem tórax bombado sustentam relacionamentos. Tudo isso é perfeitamente trocável.

A meu ver, estamos carentes, infelizes e inseguros. Cada vez mais nossa humanidade segue um caminho obscuro de distanciamento de si mesmo. Estamos tão ansiosos que vamos aos psiquiatras e aos psicólogos com mais frequência. Queremos ser quem somos, mas nem sabemos mais quem somos. Não temos mais tempo para descobrir quem somos. Estamos no tempo do desejo. Estamos amarrados socialmente. As mídias têm nos bombardeado com informações sobre o que devemos desejar para que sejamos desejáveis. Por que devemos comprar tal roupa ao invés daquela? Por que devemos ter tal profissão e não aquela? Quanto dinheiro devemos desejar ter? A que milhares de restaurantes devemos ir? Desejar o que o senso comum deseja e não nos satisfazermos jamais. É isso que querem para que continuem lucrando. Se nos dermos por satisfeitos, o que mais compraríamos? Nada.

Os epicuristas acreditam que a felicidade, e até a riqueza, está em desejar ou querer aquilo que já se tem. Concordo plenamente e vou um pouco além. O desejo é incurável. Sempre existirá. Entretanto, há que interpreta-los antes de atendê-los. Há desejos valorosos e há desejos absolutamente descartáveis.


Vanessa L






segunda-feira, 17 de março de 2014

Não sei se acontece com todos

Não sei se acontece com todos, mas hoje tive vontade de chorar ao fim dum cocktail com cachaça reforçada. Penso que seja a mesma sensação de quem toma laxante para aliviar o intestino. Eu quase choro em frente a um desconhecido. Conhecido desconhecido. Senti por ele súbito desejo dias atrás, quando me fez inesperada visita. Mas, hoje, a bebida esclareceu que ele não servia para mim e que provavelmente eu estava ovulando. Cheguei em casa e tomei cápsulas de cafeína para espantar a zonzeira. Deu pouco certo. Agora penso que nasci para ser só e que nunca tive sorte em relacionamentos. Acho que devo priorizar a família e o trabalho, ajudando pessoas que estão beirando a morte ou que passam a vida em sofrimento físico constante. Pessoas que realmente merecem atenção, independentemente da reciprocidade.

A cachaça levou-me a essa conclusão.

Vanessa L

quarta-feira, 12 de março de 2014

Um carinho de quem menos se espera

Fui trabalhar hoje, mesmo doente. Saí de casa sem fazer o desjejum pois estava com grande desconforto abdominal. Eu e minha equipe viajamos sempre um longo caminho de piçarra até chegarmos ao posto de saúde. 

Comecei o atendimento, e confesso que hoje eu não estava nada  disposta. Às vezes, sentia a "cabeça vazia", mãos frias e suadas, uma leve taquicardia, sintomas típicos de hipoglicemia, o que já era previsto. 

Não vi quantos pacientes atendi. Sei que sorri e disse 'bom dia' a todos, tentando esquecer um pouco de mim. Aquelas pessoas já tinham problemas demais... 

Terminei tudo por volta de uma e meia da tarde e ,como de praxe, esperei o motorista retornar para nos levar de volta para casa, naquele mesmo longo caminho da vinda. 

Contrariando todas as minhas expectativas, o carro - o único carro ali disponível - deu prego. 
Não tinha muito que pudesse ser feito. Então, disse à técnica de enfermagem, resignadamente: "O jeito é esperar..."

Fomos para a casa de uma das agentes de saúde, Nonata, esperar um outro carro que deveria chegar dali a uma hora. 

Casa simples, sem laje, avarandada, rodeada de plantas e animais domésticos. 

Sabendo da minha condição de saúde, Nonata logo preparou-me uma rede limpa, na varanda, onde o vento batia confortavelmente, água de coco (de um dos seus coqueiros) e palavras carinhosas. Não precisava de mais nada... 

Fazia tempo que não recebia um mimo. 
Ela cuidou muito bem de mim com o pouco que tinha. 
Acho que foi Deus quem a colocou no meu caminho. 

domingo, 9 de março de 2014

A impaciência dos apaixonados

São impacientes, frágeis e mentalmente adoentados todos os apaixonados. E não no sentido figurativo. A própria definição da palavra a descreve (segundo alguns artigos, deriva do latim tardio - passio-onis, que vem de passus, particípio passado de pati, sofrer). Confundida na Literatura com o amor, a paixão sempre foi exaltada pela humanidade. Eu, em minha nuance otimista, até vejo vantagens evolutivas neste sentimento quase incontrolável. Não é por acaso que ele existe. Afinal, estamos aqui e prosseguimos em nossa "difícil" tarefa de perpetuar a espécie.

Agora, de repente, não mais que de repente, nosso cérebro captou alguém e o identificou como possível parceira sexual fixa [para os homens] ou até-que-a-morte-nos-separe príncipe encantado [para as mulheres]. De forma genérica, é assim. Estou falando de paixão, e não simplesmente de desejo sexual (atentem para isso). Uma cascata de reações químicas são desencadeadas pela presença ou lembrança desse indivíduo eleito. Os sintomas são intensos e  avassaladores. Cito alguns: aumento da pressão arterial, frequência cardíaca e frequência respiratória, dilatação das pupilas, tremores, pensamento obsessivo na pessoa amada, além da falta de apetite, concentração, memória ou sono. Segundo o neurocientista Renato Sabbatini, "O mecanismo cerebral é idêntico ao de se viciar em cocaína", podendo, da mesma forma, levar a uma síndrome de abstinência, quando o enamorado se distancia do seu eleito, provando o quanto aquele fica dependente deste. Isso explica também o porquê do ciúme. Explica também o porquê de esse fenômeno paixão durar, no máximo, quatro anos. Morreríamos por overdose.

Essas substâncias químicas entorpecentes, que produzem a nossa sensação de estar apaixonado, são hormônios estimulantes. Entre elas podemos citar: adrenalina, noradrenalina, feniletilamina, dopamina, ocitocina, serotonina e endorfinas, e novos agentes ainda estão sendo pesquisados.

Em vários artigos, é possível aprender como cada um desses hormônios age sobre nosso organismo. A dopamina, por exemplo é o hormônio do 'frio na barriga'. A dopamina e a endorfina, ao que parece, estimulam, juntos, os circuitos de recompensa, os mesmo que nos proporcionam prazer em comer quando sentimos fome e em beber quando temos sede. Já a ocitocina parece estar relacionada com vínculos afetivos mais duradouros, como o da mãe com seu filho. A ciência têm apostado muito na ocitocina e feito várias experiências com seu uso em pacientes psiquiátricos e portadores do transtorno do estresse pós-traumático, obtendo resultados positivos.

Confirmei em minha pesquisa algo de que eu já suspeitava: Apesar de todos nós sermos viciados em paixão, um fardo que carregaremos até o fim dos tempos, há os que levam isso ao extremo. São as pessoas que, passados os sintomas iniciais de encantamento, buscam outro objeto de desejo na tentativa de reativar a zona de recompensa. Como pode alguém gostar de ter palpitação no peito 24 horas por dia?

As músicas não se cansam de exaltar a paixão. A paixão como sentimento egoísta, que se fundamenta na urgência do enaltecimento do "eu". "Eu" preciso que quem eu "amo" me ame o mais rápido possível.


"Entre por essa porta, agora, e diga que me adora
Você tem meia hora pra mudar a minha vida" 
(Vambora - Adriana Calcanhotto)

Análise: Veja como o autor desses versos coloca a responsabilidade de sua felicidade no outro.


"Enfim, de tudo que há na terra
Não há nada em lugar nenhum
Que vá crescer sem você chegar
Longe de ti tudo parou
Ninguém sabe o que eu sofri" 
(Oceano - Djavan)

Análise: O mundo não tem sentido sem a pessoa amada. Nada cresce sem a presença dela. A pessoa "amada" é vida para o eu lírico. Apenas ele sabe o que é sofrer. Ninguém, além dele, sofreu por paixão. Ah! Me poupe.


"Diz que estive por pouco
Diz a ela que estou louco 
Pra perdoar
Que seja lá como for
Por amor
Por favor
Que é pra ela voltar"
(Desalento - Chico Buarque)

Análise: Crise de abstinência explícita nos versos.


E algo que me surpreendeu: Homens apaixonam-se mais que mulheres, segundo as pesquisas. Entretanto, por curto período de tempo. Já as mulheres costumam ser mais cautelosas, mas quando apaixonam-se viram umas verdadeiras amélias por dois ou quatro anos, tempo suficiente para constituir prole com um homem que pode não ser tão compatível como elas pensaram no começo de tudo, quando eles realmente estavam apaixonados e tudo faziam por suas rainhas. "No começo tudo são flores", já dizia minha mãe.

Impacientes apaixonados, sempre a tomar decisões precipitadas. Alguns matam, mentem, roubam, morrem por paixão. Os menos loucos apenas mudam de cidade e embarcam em uma relação monogâmica que, ao longo do tempo, transforma-se em amizade verdadeira ou inimizade sincera.

Gosto mais da amizade. Quando digo que deve haver amizade, antes de qualquer coisa, me acham careta. Aquela droga da paixão é que nos deixa altos, serelepes e irracionais. A amizade é suave, não maltrata, não nos oprime. Amizade verdadeira também não afasta a possibilidade de um amor romântico, baseado no companheirismo, na cumplicidade e na atração física (por que não?).

Amantes divorciam-se como trocam de carro, mas amigos leais... Só a morte os separa.


Vanessa L



Cautela

Tu sentas aqui.  Só um pouco de cautela,
É antiga e o pé carcomido
pode ser que ceda.

É o que quero dizer e digo:
- O pé desgastado pode arruinar tudo
A cadeira cai
Tu cais.
Fraturado o fêmur,
Acamada tu,
Morres por embolia
E por aí vai.

Então, um pouco de cautela é preciso. 

Vanessa L (28.12.2013)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Medicina - um caminho entre a humildade e o poder

- Doutora, pelo amor de Deus! Salve meu pai! Eu lhe imploro, por tudo que é mais sagrado! - clamava a mulher recém - chegada ao pronto socorro, às 19:15 de um sábado. 

Atrás dela, que tinha estatura mediana e facies de desespero, pude ver um pai ofegante e cianótico, agonizando em cima de uma maca. 

Fiquei perplexa por breves segundos, antes que a adrenalina em meu corpo me fizesse agir com solicitude. Sem responder verbalmente à sua súplica, pedi ao maqueiro que o levasse para um canto mais silencioso, onde pudesse examiná-lo. 

Ao passar pelo pequeno posto de medicações, ouvi claramente a voz impaciente de uma das enfermeiras: "Esse aí não passa dessa noite". Em meu coração, tive medo, pois o estado daquele enfermo de quase 70 anos era realmente crítico. Seus pulmões estavam encharcados, sua respiração praticamente impossível. A enfermeira podia estar certa. Nós víamos pacientes morrer à míngua, todos os dias, nos corredores daquele hospital público. Entretanto, a única dúvida que  jamais se elucidará é o dia de nossa morte. Apenas Deus tem o privilégio de sabê-lo. Eu creio nisso. 

Até aquele momento, não havia outros pacientes em estado tão grave, então pude dar toda a minha atenção ao caso. Solicitei gasometria e outros exames, mas não pude dispor de muitos recursos, nem mesmo de um simples eletrocardiograma. Mesmo assim prossegui em meu caminho. Ele estava lutando contra a morte, e eu estava lutando com ele. Naquele dia não havia material para entubação tampouco ventilador mecânico disponível. Todos estavam ocupados. Não havia leitos vagos no centro de terapia intensiva nem na ala semi-intensiva. Estava por minha conta. 

O movimento de pacientes começou a aumentar por volta das 20:30.  Então, chegou um colega médico para me acompanhar no plantão. Pedi sua ajuda no caso em questão e, juntos, fizemos cálculos de medicações e microgotas para infundir na veia do meu paciente, já que não havia também bomba de infusão. 

A cada meia hora eu mesma ia aferir a pressão arterial e demais sinais vitais. Às 23:00, ele já havia adormecido. Percebi que sua cianose estava diminuindo e seus pulmões já expandiam melhor. Eu fui deitar-me às quatro da manhã, mas não consegui dormir. 

O desespero humano, na iminência da morte, da perda ou do sofrimento, sempre tocou profundamente em minha alma e me fez refletir.  Tinha uma vida em minhas mãos. Eu tinha um poder naquele instante.

Era isso que encantava tantas pessoas, senão todas, a inclinarem-se a determinadas profissões. E esta, a de médico, especialmente, é uma que está intimamente relacionada ao poder. Eu era médica, mas antes de tudo era tão humana quando aquela mulher - sujeita a dor, na mesma intensidade.

O que tem acontecido, ou talvez já acontecesse desde os tempos de Hipócrates ou de Galeno, é que o conhecimento a respeito do corpo humano e suas mazelas fez com que muitos desses estudiosos confundam tal poder com a necessidade de mostrar-se arrogantes, superiores, como deuses em suas enormes poltronas giratórias.

O médico arrogante crê que seu paciente é inferior a ele. No entanto, isso é grande equívoco. Esquecem-se que todo poder traz uma responsabilidade (tio Ben para o Homem Aranha). Essa responsabilidade é o nosso contra-ponto. É a responsabilidade da empatia, de sentir a dor do outro, para tratá-la tal qual fosse sua. É a responsabilidade de olhar nos olhos de quem se põe a sua frente com súplicas, de ouvi-lo, de tocá-lo, de sermos fiéis ao que nos propusemos fazer, lutar com o outro pela vida do outro, de reconhecer o erro, quando necessário.

As pessoas confundem humildade com fraqueza de espírito, quando, na realidade, é o maior presente concedido pelo Espírito Santo. É o que nos torna próximos uns dos outros. Ser humilde é saber que a dor do outro também poderá ser a sua, e estendê-lo a mão. 

Em que adianta ter tantos títulos e expertise se facilmente se desiste da vida de um desconhecido? 

Eu estive presa nesses pensamentos por alguns minutos. Voltei ao meu paciente e aferi mais duas vezes sua pressão arterial e demais sinais vitais, enquanto ignorava os olhares desacreditados daquela enfermeira. Quando deixei meu plantão, pela manhã, ele ainda dormia, como se há dias corresse uma maratona e agora descansasse. 

Fui para casa um tanto aflita. Talvez não tivesse mais notícias de sua evolução. Talvez ele pudesse ter uma recaída. Talvez fosse mesmo a sua hora. Deus é quem sabe. Mas, mesmo assim, pedi a Ele que o salvasse. Pedi por sua filha, que ela encontrasse alívio espiritual. E segui minha vida, como sempre.

Dias depois, voltei ao hospital por motivos pessoais. Uma amiga muito querida havia fraturado a fíbula e estava internada na ala ortopédica. Fui visitá-la sem jaleco nem maleta. Ao passar pelo corredor comum, procurei meu paciente com o olhar, e vi um homem sentado à beira de um leito, alimentando-se. Sua acompanhante abordou-me. Era uma mulher de estatura mediana e semblante feliz:

- Boa noite, doutora! Veja meu pai! Como está bem!
- Boa noite! Então esse era o paciente do sábado?

Ela anuiu com a cabeça. 

Não o havia reconhecido até ali. Era um homem corado que comia com bom apetite. 
- Que bom que ele está bem! Graças a Deus! - não pude disfarçar a minha felicidade ao vê-lo naquele estado.
- Graças a senhora! 
- Éramos uma equipe. Havia outro médico e Deus estava conosco. Tenho certeza. - eu tinha algumas lágrimas em meus olhos que não pude conter. 

Apesar de todos os infortúnios e das palavras agourentas da enfermeira incrédula, ele sobreviveu - pensei.

Ela, então, me abraçou com um pouco de timidez, mas imensa gratidão. E eu fui embora, sem nunca mais ter notícias deles. 

A Medicina é uma das profissões mais cobiçadas pela humanidade. Entendo o motivo. Comparo-a com um rio. Lastimo que muitos logrem apenas uma de suas margens, a margem do poder. A outra margem é a da humildade. A medicina, a meu ver, é o caminho do meio.

Vanessa L (07.03.2014)

quarta-feira, 5 de março de 2014

Adormecer com Rachmaninoff

Nada melhor que adormecer ouvindo música clássica. Foi o que aconteceu comigo ontem.

Sergei Rachmaninoff, pianista, compositor e maestro russo, nascido em 1 de Abril de 1873, foi um dos grandes nomes do estilo romântico na música clássica européia.

É tido como um dos pianistas mais influentes do século XX. Uma curiosidade a seu respeito é que suas mãos eram tão grandes que conseguia cobrir o intervalo de uma 13ª, no teclado (um palmo esticado de cerca de 30 centímetros). Estudam, por tal fato, a possibilidade de ele ter sido portador da Síndrome de Marfan, já que o tamanho de suas mãos correspondiam à sua estatura, em torno de 1,91 e 1,98. 

Sua mãe fora sua primeira professora de piano, mas não via nele um futuro promissor. Ao longo de sua vida, muitas pessoas desacreditavam de sua habilidade como compositor, inclusive ele mesmo, sempre questionando-se e, por vezes, envergonhando-se de suas criações.

Morreu em 28 de Março de 1943, em Bervelly Hills, na Califórnia, alguns dias antes de completar 70 anos de idade. Segundo consta em suas biografias, nas horas finais de sua vida, insistia que podia ouvir música tocando em algum lugar por perto. Após ser repetidamente assegurado de que não era o caso, ele declarou: "então a música está na minha cabeça". 

Algo que me surpreendeu foi ter identificado trechos de sua composição "Concerto para piano nº 2 in C minor" em uma música trilha sonora do filme "As patricinhas de Bervelly Hills". A música que toca quando a personagem principal descobre-se apaixonada por seu melhor amigo foi composta por Eric Carmen, em 1975, chama-se "All by myself". A posteriori, li que a inserção de frases melódicas fora realmente proposital. 


E aqui vocês podem apreciar o "Concerto para piano nº 2 in C minor", de Sergei Rachmaninoff: 


A paz do Senhor Deus a todos!






segunda-feira, 3 de março de 2014

O ignorante

Ignorante é o homem que, sob nenhuma circunstância, sai de sua concha. Trancafia-se em suas falsas verdades, criadas a esmo para justificar seus vícios, e sacia-se em sua crônica inércia. Ignorante é o homem que não se contraria, que não se questiona, que não se interrompe em sua rotina e mecanicamente vive. O ignorante satisfaz-se com a superfície do lago, com os miseráveis e fugidios prazeres, os mais acessíveis, os mais dispersos. Com o controle remoto e botões aciona objetos eletrônicos, e mal sabe ele que há tempo tornou-se objeto também, de si. Ignora-se. Despreza seu raciocínio e alegra-se com as coisas prontas e com os manuais. O ignorante gargalha do ser pensante e ridiculariza-o, e mal sabe ele próprio de sua pobreza d'alma. Esbanja dinheiro, luxo ou luxúria e execra sua humanidade. Escravizado é em seu labor, por si mesmo, não por outrem. Trabalha sem produzir. O ignorante não cria, reproduz. Ama a carne e escusa-se do amor e da verdade.  

Vanessa L (03.03.2014)


Vindo de não sei onde

Por que me abandonaste? Era pra ter sido só um susto e foste por quase dez anos, sem direito a visitas. Eu te esperei por mais de oitenta mil horas, na porta de casa, vendo passar o vento, as folhas destacadas das árvores, papéis avulsos, coisas órfãs, cachorros, bandos de aves, tudo, menos tu. Era pra teres te ausentado apenas por parco tempo. Era pra teres ido ali, rapidamente, como quem vai apenas tragar um cigarro e volta para terminar um diálogo suspenso. Deixaste-me aqui, entretanto, solitária, ridícula sem ti.

Já agora tenho uma beleza recôndita, não mais aquela, deslumbrante, porque te desvencilhaste de mim e a vida tornou-se bruta.  Não te espantes caso eu já tenha rugas e um humor sarcástico. Não pensaste tu, em algum momento, que eu poderia ressecar tais quais as folhas que vi passar com o vento? Não te interrogaste com que idade tu me encontrarias ao voltar, afinal?

Foi de um silêncio apavorante essa década de ausência tua. Foi de uma agonizante espera, principalmente porque não sabia por onde andavas.

E agora estás aqui, como quem havia estado um dia fora. Não te faço tantas perguntas. Não interessa tanto os porquês. Aconchega-te de novo em mim, espalha-te por aqui e dentro de minh’alma, para que eu possa respirar a poesia nova que trouxeste de não sei onde.

Vanessa L (09.01.2014)




domingo, 2 de março de 2014

Método para esquecer alguém


Substituí prazeres. Eu já fui bem magra porque praticava sexo diariamente. Hoje me rendo às lambanças da culinária italiana. Então, quando como, esqueço tudo e me entrego. É como no orgasmo. O bom é que fantasio que não preciso mais de ti. E, às vezes, eu até acredito, sabia? O ruim é que já engordei dezessete quilos desde lá. A última calça jeans que me serviu foi a da minha mãe. Por outro lado, consegui jogar aquelas fotos no lixo e do teu número só me recordo dos três últimos dígitos. É foda. Demora muito pra esquecer mesmo, né? Afinal, estivemos juntos cinco anos. Não foi uma coisinha à-toa. Mas hoje eu descobri uma espagueteria nova a duas quadras de casa e estarei lá às oito em ponto.

Vanessa L (01.10.2012)




Acordar com Fernando Pessoa

Um dos culpados por minhas perambulações filosóficas, Fernando Pessoa foi o poeta que mais me encantou em toda a minha existência até aqui. Apresentado a mim, de forma profunda e sensibilizante, por um grande professor de Literatura, em 2003, a quem, por isso, serei eternamente grata.

Fernando Pessoa, em suas diversas faces, foi um gênio em sua época e perpetuado em sua literatura.


Deixo aqui um de seus adoráveis e longos poemas - Hora Absurda.

Gostei muito da narração, em espanhol, que encontrei no Youtube. Compartilho com vocês:



Desculpe-me o poeta, já ido, mas facilitarei ao leitor o entendimento de tão belas estrofes, com o significado de algumas palavras entre parênteses.


Hora Absurda

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas (cheias)...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas (bandeirolas), teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas (suportes altos de madeira com ressaltos para os pés)
Com que me finjo mais alto e ao pés de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora (vaso) que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões (palhaços)

Chove ouro baço (sem brilho), mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios (tipo de livro) úteis entre as pedras das barricadas (barreiras feitas com pedras)...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!...E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
Do longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas...Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo (jato, jorro de água)...Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lago aziago (infeliz, de mau agouro) minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas...Veio o sol que já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...Pelo ouro das searas (campos de cereais)
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro (cume, pico) ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!...Ó leões nascidos na jaula!
Repique de sinos para além, no Outro Vale...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte o Sul?...O que está descoberto?...

E eu deliro...De repente pauso no que penso...Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque -
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com um fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem (entristecem)
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

O que é que me tortura?...Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie (imagem de uma pessoa numa medalha) num país para além dos sonhos...

Fernando Pessoa - 1919

sábado, 1 de março de 2014

O guerreiro e o sonho



Próximo ao ocaso, encontramo-nos em um de seus inesperados sonhos, eu e o ilustre guerreiro. Foi em uma calçada alta de frente para o mar. Às nossas costas, três pescadores eternamente pétreos arrastavam sua rede em direção a areia da praia. O silêncio entre nós deve ter durado milésimos de segundo, pois o sonho processava uma urgência latente daquele diálogo. Seus olhos, vistos por ele mesmo, estavam atentos a cada movimento que eu, criada e elaborada por sua inteligência, representava com meu corpo.

Levei-o até a areia da praia, por onde caminhamos imersos no som que as ondas do mar produziam. Durante o andar sem rumo, retirava-o abruptamente de seu sossego com indagações a respeito do seu eu e do eu que ele havia criado para mim. Eu era uma luz na sua escuridão, a personificação de suas dúvidas e seus conceitos embaralhados, a respeito de quase tudo. Às vezes, interrompia a caminhada, e sentava com as pernas estendidas, admirando a linha horizontal que nunca alcançaríamos. Ele continuava sempre em pé, ao meu lado, contemplando-me.

- Quanto tempo ainda temos aqui? - perguntei enquanto riscava a areia com os dedos.
- Não muito. - ele respondeu suspiroso. 
- Em que você acredita, de verdade? Isso tudo é irreal só por ser um sonho? Um irreal dentro do real?
- Quando você parará de me fazer perguntas que não sei responder?

Indiferente ao que ele retrucava, eu prosseguia com as interrogações.

- Sobre o que gostaria de conversar? Você acredita em que, afinal? Acredita na dualidade humana? Existe o bem e o mal? Sabe qual o maior desafio do homem, nesta dimensão física? É o de viver em um espaço com outras pessoas que necessitam dos mesmos recursos que aquele espaço oferece, respeitando limites que o outro delineia, além de compreender e aceitar a satisfação e regozijo alheios. Nossos anseios primitivos, que antes de mais nada, são princípios de sobrevivência e pré-requisitos básicos de bem estar físico ou mental - respirar, comer, dormir, eliminar escórias do corpo, nos definem como animais. O que nos define como animais racionais é o anseio pela comunicação e argumentação que possam representar desejos, sentimentos, histórias, idéias, sonhos, conflitos, fomentados por poderes como o raciocínio, imaginação, empatia, projetação, oriundos de nossa psique. Viver em sociedade é entender o outro ser humano no conjunto de todos os seus anseios e poderes e não como objeto que utilizamos ou desprezamos para alcance de nossos prazeres individuais. -  pausei reflexiva - No que você está pensando?

-Estou pensando no assunto. 

Eu sorri porque percebi, em seu sonho, que ele estava mentindo, e insisti:

-No que você está pensando? 
-Estava calculando em que momento lhe daria um beijo, e se, quando chegado o momento, avisaria ou pediria. Estava pensando nisso. 
-Beijo não se solicita.

Nesse momento, ele curvou-se para beijar sua criação onírica, eu, mas recuei e disse-lhe com outro sorriso:
-Tenha calma. 

Após uma outra pausa, já continuando a caminhada na contramão do vento, retomei o meu discurso:
- Considero-me enigmática. Gosta de desafios?
- Sim. Gosto. 

Havíamos caminhado silenciosamente um longo trecho  à beira da praia, quando resolvi:
-Agora quero o beijo.

Aproximou-se mais uma vez, eu novamente recuei:
-Calma. [...] Disse que gostava de desafios?
-Sim. Eu disse. 
-Quero que seja um beijo diferente. Quero que me carregue em seus braços e que o beijo dure até aquela escultura, onde nos encontramos, no princípio do seu sonho. - e apontei ao longe. 
-Farei de tudo para ir além. - ele disse, sem titubear.

A última frase ecoou dentro de seu peito, tornando-se cada vez mais distante. E antes que se consumasse o beijo, o tempo do sonho esgotou, e ele despertou absolutamente.