quinta-feira, 6 de março de 2014

Medicina - um caminho entre a humildade e o poder

- Doutora, pelo amor de Deus! Salve meu pai! Eu lhe imploro, por tudo que é mais sagrado! - clamava a mulher recém - chegada ao pronto socorro, às 19:15 de um sábado. 

Atrás dela, que tinha estatura mediana e facies de desespero, pude ver um pai ofegante e cianótico, agonizando em cima de uma maca. 

Fiquei perplexa por breves segundos, antes que a adrenalina em meu corpo me fizesse agir com solicitude. Sem responder verbalmente à sua súplica, pedi ao maqueiro que o levasse para um canto mais silencioso, onde pudesse examiná-lo. 

Ao passar pelo pequeno posto de medicações, ouvi claramente a voz impaciente de uma das enfermeiras: "Esse aí não passa dessa noite". Em meu coração, tive medo, pois o estado daquele enfermo de quase 70 anos era realmente crítico. Seus pulmões estavam encharcados, sua respiração praticamente impossível. A enfermeira podia estar certa. Nós víamos pacientes morrer à míngua, todos os dias, nos corredores daquele hospital público. Entretanto, a única dúvida que  jamais se elucidará é o dia de nossa morte. Apenas Deus tem o privilégio de sabê-lo. Eu creio nisso. 

Até aquele momento, não havia outros pacientes em estado tão grave, então pude dar toda a minha atenção ao caso. Solicitei gasometria e outros exames, mas não pude dispor de muitos recursos, nem mesmo de um simples eletrocardiograma. Mesmo assim prossegui em meu caminho. Ele estava lutando contra a morte, e eu estava lutando com ele. Naquele dia não havia material para entubação tampouco ventilador mecânico disponível. Todos estavam ocupados. Não havia leitos vagos no centro de terapia intensiva nem na ala semi-intensiva. Estava por minha conta. 

O movimento de pacientes começou a aumentar por volta das 20:30.  Então, chegou um colega médico para me acompanhar no plantão. Pedi sua ajuda no caso em questão e, juntos, fizemos cálculos de medicações e microgotas para infundir na veia do meu paciente, já que não havia também bomba de infusão. 

A cada meia hora eu mesma ia aferir a pressão arterial e demais sinais vitais. Às 23:00, ele já havia adormecido. Percebi que sua cianose estava diminuindo e seus pulmões já expandiam melhor. Eu fui deitar-me às quatro da manhã, mas não consegui dormir. 

O desespero humano, na iminência da morte, da perda ou do sofrimento, sempre tocou profundamente em minha alma e me fez refletir.  Tinha uma vida em minhas mãos. Eu tinha um poder naquele instante.

Era isso que encantava tantas pessoas, senão todas, a inclinarem-se a determinadas profissões. E esta, a de médico, especialmente, é uma que está intimamente relacionada ao poder. Eu era médica, mas antes de tudo era tão humana quando aquela mulher - sujeita a dor, na mesma intensidade.

O que tem acontecido, ou talvez já acontecesse desde os tempos de Hipócrates ou de Galeno, é que o conhecimento a respeito do corpo humano e suas mazelas fez com que muitos desses estudiosos confundam tal poder com a necessidade de mostrar-se arrogantes, superiores, como deuses em suas enormes poltronas giratórias.

O médico arrogante crê que seu paciente é inferior a ele. No entanto, isso é grande equívoco. Esquecem-se que todo poder traz uma responsabilidade (tio Ben para o Homem Aranha). Essa responsabilidade é o nosso contra-ponto. É a responsabilidade da empatia, de sentir a dor do outro, para tratá-la tal qual fosse sua. É a responsabilidade de olhar nos olhos de quem se põe a sua frente com súplicas, de ouvi-lo, de tocá-lo, de sermos fiéis ao que nos propusemos fazer, lutar com o outro pela vida do outro, de reconhecer o erro, quando necessário.

As pessoas confundem humildade com fraqueza de espírito, quando, na realidade, é o maior presente concedido pelo Espírito Santo. É o que nos torna próximos uns dos outros. Ser humilde é saber que a dor do outro também poderá ser a sua, e estendê-lo a mão. 

Em que adianta ter tantos títulos e expertise se facilmente se desiste da vida de um desconhecido? 

Eu estive presa nesses pensamentos por alguns minutos. Voltei ao meu paciente e aferi mais duas vezes sua pressão arterial e demais sinais vitais, enquanto ignorava os olhares desacreditados daquela enfermeira. Quando deixei meu plantão, pela manhã, ele ainda dormia, como se há dias corresse uma maratona e agora descansasse. 

Fui para casa um tanto aflita. Talvez não tivesse mais notícias de sua evolução. Talvez ele pudesse ter uma recaída. Talvez fosse mesmo a sua hora. Deus é quem sabe. Mas, mesmo assim, pedi a Ele que o salvasse. Pedi por sua filha, que ela encontrasse alívio espiritual. E segui minha vida, como sempre.

Dias depois, voltei ao hospital por motivos pessoais. Uma amiga muito querida havia fraturado a fíbula e estava internada na ala ortopédica. Fui visitá-la sem jaleco nem maleta. Ao passar pelo corredor comum, procurei meu paciente com o olhar, e vi um homem sentado à beira de um leito, alimentando-se. Sua acompanhante abordou-me. Era uma mulher de estatura mediana e semblante feliz:

- Boa noite, doutora! Veja meu pai! Como está bem!
- Boa noite! Então esse era o paciente do sábado?

Ela anuiu com a cabeça. 

Não o havia reconhecido até ali. Era um homem corado que comia com bom apetite. 
- Que bom que ele está bem! Graças a Deus! - não pude disfarçar a minha felicidade ao vê-lo naquele estado.
- Graças a senhora! 
- Éramos uma equipe. Havia outro médico e Deus estava conosco. Tenho certeza. - eu tinha algumas lágrimas em meus olhos que não pude conter. 

Apesar de todos os infortúnios e das palavras agourentas da enfermeira incrédula, ele sobreviveu - pensei.

Ela, então, me abraçou com um pouco de timidez, mas imensa gratidão. E eu fui embora, sem nunca mais ter notícias deles. 

A Medicina é uma das profissões mais cobiçadas pela humanidade. Entendo o motivo. Comparo-a com um rio. Lastimo que muitos logrem apenas uma de suas margens, a margem do poder. A outra margem é a da humildade. A medicina, a meu ver, é o caminho do meio.

Vanessa L (07.03.2014)

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